Decorreu ontem a segunda sessão do ciclo de homenagens a Paulo Varela Gomes. Com imenso prazer e um enorme voto de agradecimento à organização (APHA) aceitei fazer parte do leque de amigos, colegas, e profissionais que se juntaram a esta iniciativa. Em género narrativa depositei as minhas palavras num texto que me pareceu fazer a justa homenagem a quem teve tanta importância na minha vida. Consegui, acho eu, passar a mensagem que queria, no entanto, por contingências de tempo não consegui dizer tudo o que tinha preparado. Partilho agora o texto e as imagens.
PAULO VARELA GOMES. CREATIO MEMORIAE 16 junho 2018
MUSEU DE SÃO ROQUE, Lisboa
“HONESTO, OU BRUTALMENTE HONESTO?”
por Mónica Esteves Reis
Tenho a idade certa para ter sido aluna do Paulo, iniciei-me num tema de pesquisa que me aproximou do Paulo, não fui, no entanto, aluna do Paulo. Se há pessoas que entram na nossa vida e não somos capazes de lembrar quando e em que circunstancias as conhecemos, não é este o caso do Paulo na minha vida. Tenho perfeitamente marcado na minha memória todos os acontecimentos que me levaram à sua pessoa porque estes são na verdade, os primeiros passos que me levaram a Goa.
Para falar do Paulo e passar a mensagem da sua vital importância neste meu ciclo de vida preciso, sem demagogias, recordar os vários momentos que fizeram do Paulo a pessoa que vive em mim, certamente o mesmo que acontece para todos vós.
PAULO, O INACESSÍVEL?
Em 2008, já com um primeiro pedido de bolsa de doutoramento recusada pela FCT, Francisco Lameira, meu orientador, disse-me para nesta nova candidatura contactar o Paulo e pedir-lhe uma carta da recomendação. Lembro-me de ripostar dizendo que como poderia o Paulo passar-me uma carta de recomendação se não me conhecia de lado nenhum e eu evidentemente não era ninguém. O Paulo era o autor de artigos que eu conheci a ler para a minha licenciatura, não uma pessoa que eu achasse poder contactar diretamente. Notoriamente, não conhecia o Paulo.
As suas palavras foram essenciais para que o estado português pudesse dar-me o apoio necessário. Na avaliação da candidatura pela FCT lia-se: «Reconhece-se a pertinência do projeto, o seu correto desenvolvimento e justificação. Valorizou-se também a recomendação científica do Professor Paulo Varela Gomes, profundo conhecedor da realidade que se pretende estudar».
Poucos meses depois, em 2009, embarcaria para Goa para iniciar a tarefa do inventário artístico nas igrejas de Goa. Não foi a minha primeira viagem à India, mas era certamente a primeira viagem “sem rede”. Em 2007 já me tinha aventurado por terras de Damão e Diu, mas com o suporte quase que familiar das pessoas que me acolheram por lá. Em Goa, estava completamente por minha conta. Era dia 6 de Fevereiro de 2009, uma sexta-feira de tarde e o quarto onde me tinha instalado era enorme e deprimente, num hotel cuja receção fecha pelas 19h e temos de usar uma porta secundária numa rua suspeita para aceder ao quarto, com um serviço de televisão que funciona mal e só até às 18h, numa rua demasiado movimentada e a dor da separação do meu filho de 9 meses exacerbada por todo este cenário.
Foi no sábado que pela primeira vez me dirigi à delegação da Fundação Oriente nas Fontainhas. Queria conhecer pessoalmente a pessoa que tinha tornado possível o financiamento do meu doutoramento e entregar o meu singelo agradecimento. O Paulo não estava, mas o segurança disse que ele estava para vir a qualquer altura. Sentei-me nos jardins e aguardei. Ao fim de cerca de uma hora chega um jipe conduzido por quem eu achei que pudesse ser o Paulo, acompanhado da Patrícia sua esposa e da Alice Santiago Faria com o filho ainda de colo. Apresentei-me, envergonhada, e disse que tinha trazido de Portugal algo como forma de agradecimento: duas garrafas de vinho português.
Foi com surpresa e espanto que me recebeu (“você é a Mónica?”), repudiando que eu não lhe devia nada, mas agradecendo o presente. Combinamos encontro na segunda-feira seguinte. O resto do sábado e o domingo seguinte foram terrivelmente cruéis. Nada acontece num fim de semana quando ainda não se tem nada programado. Decidi que era essencial sair deste hotel ou iria exaurir-me muito rapidamente. Procurei alternativas de alojamento. Entrei em não sei quantos hotéis e vi não sei quantos quartos. O peso da decisão recaía só e somente no preço vs mínimo de conforto. Seriam dois meses num ritmo de trabalho que, se tudo corresse bem, seria alucinante. Assentei praça no Hotel Menino Regency que acedeu em baixar o preço da noite para a minha estadia prolongada e eu seria a única hóspede ocidental durante toda a minha estadia. De um quarto de hotel gigantesco e deprimente, passei para um quarto mínimo mas com um serviço de televisão, nas línguas locais que não entendia para me fazer companhia, um mini frigorífico para colocar os essenciais de sobrevivência, um serviço de cozinha 16h por dia e uma ventoinha para arejar o quarto e secar a roupa que se lavava à mão todos os dias. Foi nesse mesmo hotel que me deram a indicação de um motorista com um bom preço que me poderia levar aos locais que desejasse. Na segunda-feira em que voltei a ver o Paulo, já tinha mudado de hotel, reunido com o Padre Loiola Pereira (o secretário do arcebispo que me iria facultar uma carta de livre trânsito para poder inventariar as igrejas em Goa) e estava prestes a quebrar um contrato verbal com o motorista indicado pelo hotel.
SURPREENDENTEMENTE ACESSÍVEL
O Paulo recebeu-me no seu gabinete, aquele que depois foi ocupado pelo Eduardo Kol de Carvalho e agora pela Inês Figueira. Perguntou-me onde estava instalada e eu contei-lhe as minhas deambulações. Ficou escandalizado. Como poderia eu ficar naquele hotel de turistas indianos durante dois meses? Disse-lhe que ficaria bem, não iria ser nada de mais (e de facto fiquei, fui sempre muito bem tratada pelo staff). Mas o escândalo maior foi depois de lhe contar dos meus planos de pesquisa:
“então você quer inventariar todas as igrejas de Goa em dois meses?? E com esse motorista que nem cristão é e vai andar o dia todo consigo por estradas que você não conhece??”
Comecei a duvidar do meu plano. Achei que tinha sonhado alto demais, esmoreci brevemente.
“Não! Isso não vai acontecer. O que você vai fazer é sair desse hotel e arranjar outro motorista que eu lhe vou indicar”.
A fundação não tinha quartos para mim, estava em obras e inapta a receber-me, e para além do mais, eu não tinha solicitado apoio à fundação (erro de novata). Saímos do seu gabinete e fomos pelas fontainhas procurar alternativas de alojamento. Pelo caminho comecei a conhecer o outro Paulo, aquele que é dado às pessoas, que se preocupa com o seu bem-estar e que faz de tudo para que se possam sentir confortáveis. Ele não me devia nada, mas agiu como se eu fosse responsabilidade dele. Contou-me que na semana anterior uma investigadora tinha saído abruptamente de Goa depois de ter sido atropelada, perguntou-me várias vezes se eu tinha noção de que lado da estrada eu teria de olhar para atravessar e se por acaso eu encontrasse uma passadeira por aí que não acreditasse no seu poder.
Não encontramos nenhum apartamento disponível, mas em relação ao motorista, fez-me prometer que não iria contratar o que tinha já apalavrado. Deu-me o número de telemóvel do Luís de Saligão, cristão que fala inglês e que tinha a certeza de que me trataria bem. Eu que aceitasse o preço que ele fizesse sem discutir. Assim fiz. Liguei ao Luís Fernandes e acordei que no dia seguinte iniciaríamos o trabalho. Não vi mais o Paulo durante cerca de 2 semanas e mais uns dias. Dediquei-me ao meu trabalho e achei que não o devia incomodar, afinal, ele tinha várias pessoas à sua porta que colocou em espera para me mostrar as Fontainhas e procurar um tal apartamento que nunca se achou disponível. Já lhe tinha roubado muito tempo, achei.
Certo dia recebo um email do Paulo.
“Onde anda você? Está viva?”
Pede para lhe ligar.
“Está por cá um antropólogo, o Manuel Magalhães, e vamos jantar por estes dias a Calangute. Já foi a Calangute? Vá, aceite vir connosco porque só lhe faz bem”.
Assim fiz. Nessa noite foi-me buscar ao hotel com a Patricia e o Manuel e seguimos para Calangute. Conversa daqui para ali, eu de Lisboa como fui parar a Tavira e diz-me que mora em Tavira uma sua irmã, a Maria da Luz. Pasmo, a Maria da Luz que já a tinha encontrado por Tavira, havia sido esposa do Serginho, músico, que era amigo do meu marido, mas antes disso, muito antes, já a Maria da Luz tinha sido minha a professora de Francês na Escola Secundária de Caneças. Achou tudo isto extraordinário, como o mundo pode ser afinal tão pequeno, e como eu em Goa lhe trazia estas coincidências inesperadas. Foi uma noite agradável que depois se repetiu por outros dias e noutras refeições.
Numa dessas refeições perguntou-me como estava tudo a correr. Se estava a conseguir fazer o que me tinha proposto. Confessei que estava a ser difícil entrar no Palácio do Governador e que não conseguia a autorização necessária para fazer o inventário da Igreja da Mãe de Deus.
“Eu vou ligar para lá e depois digo-lhe alguma coisa”.
Aguardei. Um dia telefona-me:
“Oiça, amanhã cancele tudo o que tem e vá ao Palácio. Marquei encontro para si lá com um oficial da marinha de seu nome Sandeep, muito bem-parecido que com aquela farda branca alva vai recebê-la e deixa-la fazer o que quiser. Ainda você sai daqui com um novo marido!”
A sua boa disposição e humor começavam a revelar-se e eu começava a reconhecer um Paulo de que não esperava, aquele que gosta de provocar o espanto e divertir-se com as reações mais ou menos controladas de quem não está nada a espera do que aí vem.
Certo dia liga e pergunta-me por onde vou andar nessa semana porque ele iria à igreja da Mãe de Deus em Pomburpa e se queria ir com ele, para dispensar o Luís como motorista que sempre poupava esse dinheiro. Como não tinha ainda feito o inventário em Pomburpa digo que sim que irei com ele, no entanto, a menos que ele quisesse ir a mais umas 5 ou 6 igrejas nesse dia eu não poderia dispensar o Luís.
“Então, mas quantas igrejas consegue você inventariar num dia?”
– respondo que depende, mas num dia bom consigo inventariar mais de 8… nesse dia inventariei 11 locais e fiz 687 fotos gerais e de pormenor. Aliás, até este dia, 27 de fevereiro de 2009, já tinha inventariado mais de 190 locais e feito 6693 fotos de pormenor. Estes números revelavam ao Paulo a seriedade com que fazia o meu trabalho e foi algo que provavelmente contribuiu para o respeito com que o Paulo via o trabalho que eu fazia. Nessa manhã de sexta-feira tínhamos encontro combinado na escadaria de Igreja de Pomburpa. Foi aqui que eu vi revelada uma nova faceta do Paulo. O seu olhar acutilante e crítico a ler a arquitetura, mas sobretudo a ler as escolhas da sociedade indiana resultando em extremo desmazelo visual e poluição desnecessária numa igreja com magnífica escadaria. Ele confessaria achar que a paisagem tinha sido assassinada pela quantidade de cabos telefónicos e de eletricidade.
Lá dentro continuava a explicar-me o problema atual nas políticas de conservação e restauro e abrindo-me os horizontes para o que é atualmente a minha área de intervenção. Nessa noite, regressada ao meu quarto de hotel, decido ofertar-lhe uma foto tratada da fachada da igreja de Pomburpa, sem cabos, sem postes de eletricidade, sem a poluição visual que ele criticou.
Adorou, achou extraordinário, mas na mesma medida disse que não iria usar porque os goeses mereciam-se a si mesmos e que precisavam ver publicada a foto da realidade poluída.
No final da minha missão em Goa tinha conseguido fazer tudo o que me tinha proposto, quase 500 locais em Goa, mais de 17 mil ficheiros de fotografia (à exceção de Angediva que ninguém entra), e pago com rigor a confiança que o Paulo depositou na estranha que lhe havia pedido uma carta de recomendação.
Foram-se os investigadores portugueses e em Goa fiquei aparentemente apenas eu. Ao fim de quase dois meses de trabalho a decorrer surpreendentemente dentro do previsto (muito graças ao profissionalismo do meu motorista aconselhado por ele), o Paulo liga-me com um ultimato:
“oiça, está cá o meu filho com a namorada e você vai juntar-se a nós nuns dias de praia em Agonda, a melhor praia de Goa, aquela que os indianos ainda não conseguiram estragar”.
Retorqui que não podia, tinha ainda muito trabalho pela frente e não podia passar 4 dias na praia. Não funcionou:
“Você não está a perceber. Não existe lugar para um não. Então organize o seu trabalho e venha ter cá pelo fim de semana”.
Assim fiz. Nessa semana tive de arranjar tempo para ir as lojas de Panjim e encontrar um biquíni, coisa que não tinha pensado trazer e nem sequer pensado ter de comprar. Depois marquei os locais que ainda tinha do sul de Goa para sábado – Ordonfond, Galgibaga, Sadolxem, Loliem e Agonda.
No final do dia 1 de abril lá cheguei a praia de Agonda, com as suas huts sob a areia e o seu restaurante improvisado a beira mar com cadeiras de plástico vermelhas oferecidas pela Kingfisher. Com o Luís ficou o tripé e a câmara, seria ele o fiel guardador do meu equipamento nestes dias, comigo ficou uma mochila com o essencial e uma cópia do Mahabharata em inglês, leitura que o Paulo achou ser corajosa. Os jantares eram banhados à luz de velhas improvisadas em cascas de laranja trabalhadas, com peixe por prato principal e a cadela que o Paulo tinha adotado há alguns meses e que não o largava de modo nenhum. Assim era o Paulo, capaz de deitar todas as suas lágrimas pelos cães que sem culpa nenhuma eram maltratados pela sociedade indiana. Não podendo levar esta cadelinha com ele por ter cãezinhos por aí algures a depender dela, aí a tinha entregue aos cuidadores a quem ele dava dinheiro para comprar ração e a vacinarem. Sempre que o Paulo descia a Agonda, a cadela fazia uma festa, com toda a legitimidade.
Foram dois dias em semiparaíso nas vésperas de regressar a casa que agradeço ad eterno ao Paulo. Se ele não me tivesse convencido a fazer estes dias de pausa provavelmente não gostava tanto de Goa como hoje, provavelmente não tinha transformado o Paulo autor no Paulo amigo.
Recordo tudo como ontem: a primeira árvore de canela “sentida” antes de ser vista, um aroma que sai da árvore e é diferente, é intenso, mas ao mesmo tempo suave. É um murro sensorial que se entalhou em mim para sempre. Só de falar já o sinto. É como o Paulo: intenso e apaixonante, mas igualmente suave e discreto para sempre entalhado no meu ADN académico. Recordo também os passeios de praia e mergulhos no mar (os meus primeiros na Índia, na realidade), as conversas sobre a Índia, os indianos e os goeses (que não é tudo a mesma coisa), e as ideias que plantou na minha cabeça, essenciais para ter hoje um pensamento crítico, atual e abrangente.
Não é novidade para ninguém aqui que o Paulo fugia do som do obturador como quem foge da cruz. Eu vi isso nas várias tentativas que fiz para recordar em foto os dias que tive neste ambiente familiar de Agonda. Lembro-me de acordar cedo todos os dias e de passear na praia e beber do nascer do sol enquanto nas outras cabanas os meus anfitriões dormiam. Aqueles momentos foram mágicos porque até então eu não conhecia Goa senão no ram ram do trabalho, das reuniões e das preocupações de fazer tudo em pouco tempo.
Enviei-lhe posteriormente no email as fotos que tinha tirado nesses dois dias. Não é novidade que nunca consegui fazer uma foto de rosto do Paulo, mas tinha umas fotos que eu achava particularmente interessantes e que lhe enviei. Uma delas acompanhado do filho, ao longe, uma outra do Paulo, de costas para a câmara, mas de frente para o mar, a:
“devolver ao mar aquilo que o mar devolveu à terra. As lâmpadas que estes indianos mandam ao mar e o mar não as quer, devolvo-as porque os moluscos fizeram delas a sua casa”.
Quando recebeu as fotografias escreve-me a dizer que a foto dele a enviar a lâmpada ao mar seria provavelmente a melhor foto que alguém alguma vez lhe teria feito.
SÓ QUEM O CONHECE, RECONHECE O SEU MORDAZ SENTIDO DE HUMOR
Com o Paulo eu conseguia fazer as perguntas que eu achava serem básicas ou supérfluas sem ter o receio de estar a ser inconveniente. Ele colocava-me à vontade e tirava-me todos esses medos. Foi neste sentido que certo dia lhe pedi para rever um texto que em princípio haveria de ser publicado por ocasião de uma participação num congresso na Coreia em 2009. Ele respondeu que sim, que o faria com todo o gosto. Dias mais tarde faz-me duas perguntas pertinentes e mordazes. A primeira sobre como é que eu tinha conseguido ir falar de retábulos… na Coreia do Sul? Achava extraordinário. A segunda, se eu queria que, na sua apreciação do meu texto, ele fosse honesto, ou que fosse brutalmente honesto. Caso escolhesse pela segunda opção era bem capaz de nunca mais querer falar com ele. Confesso que este email me deixou feliz (…pela parte da Coreia) e perturbada (…por começar a achar que o meu texto era uma valente verborreia sem valor académico). Enchi-me coragem e respondi que preferia a verdade brutalmente honesta. Afinal com quem poderia eu aprender melhor? A minha resposta valeu-me uma apreciação de valor do Paulo que na verdade não doeu nada, só me permitiu evoluir. E assim evoluiu também a nossa amizade.
Os dias do Museu do Oriente e do curso Arquitetura e Arte Indo-Portuguesa em 2010 foram os momentos de maior aproximação e estreitamento da amizade que tínhamos forjado em 2009. Assisti a todas as sessões que consegui e numa delas, fez-me o Paulo o convite de ser eu a falar, do que sabia eu melhor que ninguém: dos retábulos, das igrejas e da conservação dos mesmos, dizia ele. Este convite colocou-me de nervos em franja. Estava nervosa e receosa da prestação que poderia ter e sobretudo com medo de falhar nos propósitos e expectativas que o Paulo depositava em mim. Tudo medos infundados, o Paulo foi sempre um perfeito gentleman e tranquilizou-me em todos os momentos, mesmo naqueles em que eu achava que tinha entrado numa sala sem ele dar pela minha presença, mas no meio de um seu discurso em que falava de retábulos na Índia rematava que, “se quiserem saber mais deste assunto, devem consultar os trabalhos da Mónica Esteves Reis que está ali ao fundo na sala”. O Paulo conseguia surpreender sempre, até quando dentro de um enorme elogio, que é este de reconhecer o meu trabalho, o fazia envolto numa atmosfera de embaraço que ele já sabia poder provocar em mim.
MORRER É MAIS DIFÍCIL DO QUE PARECE
Sei da condição do Paulo em Delhi durante a minha participação no Seminário Internacional de História Indo-Portuguesa em 2013. Foi um choque. Eu não sabia absolutamente de nada e a forma como me foi transmitida era uma perfeita sentença antes de qualquer possibilidade de cura. No regresso de Delhi, escrevo-lhe o primeiro email que se viria a tornar no nosso meio de comunicação até ao fim dos seus dias e que eu agradeço nunca terem cessado. Tranquiliza-me na resposta que envia a 21 fevereiro de 2013:
“Não sei o que é que lhe contaram sobre o meu estado de saúde, mas, de acordo com os médicos “normais” (os oncologistas, esses cretinos), já deveria ter morrido em outubro ou novembro. Não só ainda não morri como me sinto muito bem. Estou a fazer um tratamento homeopático e tem resultado”.
Estas palavras deram-me alguma tranquilidade, sobretudo pelo estado em que o Paulo se apresenta, ponderado e positivo. E assim se manteve, até que a doença progride e Paulo escreve “Morrer é mais difícil do que parece”, a 10 de abril de 2015. Aqui, a verdade sobre os seus dias abate-se em mim como uma parede de tijolos. Era demasiado cruel. Foi demasiado cruel aquilo por que ele passou, por que a Patrícia e a sua restante família passaram. Neste ano estava a terminar o meu doutoramento e a redigir as palavras de agradecimento a quem teve impacto durante este percurso académico. Sobre o Paulo escrevia:
“Se pisei terras goesas a ele o devo e à sua recomendação na F.C.T. Pessoa de inenarrável e grandiosa personalidade que me permitiu tertúlias académicas sem o peso do academismo e me engrandeceu profissionalmente. Um orientador não-oficial que esteve sempre disponível em ajudar-me no que precisasse. Recordo com grande saudade e carinho as histórias que me contou e os momentos aquém e além-mar. Até já Paulo”. Havia de me responder no email quando recebe uma cópia dos agradecimentos:
“Querida Mónica, desculpe o atraso na reação à sua msg mas isto aqui não vai nada bem (dois dias de cama e sem forças, para já.) Muitos parabéns pela tese. Seria impossível para alguém menos tenaz, corajoso e sistemático. De onde raio tirou a foto da Catedral?). As palavras que me dirige são excessivamente simpáticas. Mas há nelas outra coisa, não formal, não académica, uma atmosfera amorosa que me lisonjeia. A este género de palavras não se deve reagir com mais palavras. Lembro-me de si em Goa. Calo-me. Um beijo.”
Assim era o Paulo, um eterno apaixonado pela vida, com um cérebro pulsante certamente numa constante criação de cenários e com uma bondade imensa no peito. Ainda em 2015 voltamos a “falar” dos dias de Agonda e de Cola, já o Paulo recusava visitas, não conseguia falar, mas permitia e respondia aos emails:
“É comovente aquele conjunto de fotos da praia de Cola, sobretudo todas aquelas em que não se vê a cara de ninguém. Comovente e perturbador”.
Era a sua sensibilidade a falar mais alto que tudo, a sua paixão pela vida a ser maior que ele mesmo. Haveria de lhe responder nestes modos: Não sou nada nem ninguém. Tenho pretensões de ser alguém e sonho alto. Por isso de vez em quando lanço-me ao desconhecido e faço alguns brilharetes. Noutras vezes os meus sonhos são amarrados à terra por quem não deve. E eu deixo porque deve fazer parte da minha penitência pessoal, alguma herança cósmica que ganhei um dia. No meio da confusão desses momentos aparece raramente um alguém que me dá alento a continuar, que acredita em mim e vê potencial. São poucas as pessoas que estão nesse clube restrito. O Paulo inclui-se. Os dias de Goa de 2009 foram pautados por momentos charneira na minha vida e pela primeira vez senti que seria capaz de fazer alguma coisa de mim. Estas fotos não falam da primeira árvore de canela que vi, do primeiro mergulho no índico, de acordar cedo para ver o nascer do sol e acordar antes das vacas na praia. E não falam da admiração que tenho por si e terei sempre. Pode ter perdido a voz, mas cada linha de texto escrita por si que leio é como se estivesse à minha frente. Não sei se é assim que os outros se sentem, mas eu consigo ouvir a sua voz, pausas e entoações a cada frase. Falo do Paulo de Coimbra que fala das arquiteturas da Índia e de Portugal e que escrevia Cartas de Cá. Apenas ontem fui apresentada ao Paulo que escreveu um brutal testemunho em primeira mão do que vive. E também consegui ouvir a sua voz. O que é brutal e indescritível está lá de viva voz. Não diga que perdeu a voz e que se calou o fala-barato porque de fala-barato não tinha nada e ainda não se calou nem um minuto. Só é fala-barato quem fala sem partilhar uma sequer décima de centelha de conhecimento. O Paulo falou, ouviu-me, direcionou-me, acreditou em mim. E sem soberba alguma mesmo tendo todo o direito de a ter. Dê-me tempo e trela para falar que eu falarei maravilhas de si tal o impacto que tem na minha vida.
PAULO É UMA VOZ PRESENTE
O Paulo recusou que o visitasse sempre que lhe pedi mas nunca se recusou a responder aos emails. Decidi honrar o seu pedido e decidi também que todos os emails que lhe enviasse teria de fazer uma qualquer piadola e terminar dizendo até já. Foi sempre neste tom que o Paulo, até ao dia 2 de outubro de 2015 recebeu e respondeu às minhas solicitações, que por vezes mais não eram do que simples provocações só para o poder “ouvir”. Foi por este motivo que eu me recusei a ler os seus livros, porque eu tinha a sua voz na tela do computador e queria saboreá-la sem ruídos. O Paulo autor académico tinha-se tornado amigo e por vias da tecnologia eu conseguia ainda ouvir a sua voz. A 17 de Junho de 2015 fiz questão de enviar para Podentes uma carta escrita agradecendo por tudo o que foi na minha vida. Iniciei a carta dizendo que lhe enviava um abraço que queria dar pessoalmente. Tudo o que lhe disse de seguida repliquei já aqui neste texto. Terminei a carta “com imensas saudades, deu borem korum” e duas moedas de 1 rupia para que entregasse a Caronte, uma de pagamento adiantado da minha partida para que eu pudesse dizer que vinha da sua parte.
A partir de outubro de 2015 deixei de ter respostas aos meus emails e o coração ficou cada vez mais apertado. Fui sabendo do Paulo por aqui e por ali, nos amigos comuns e mesmo sem resposta fazia questão de continuar a ter motivos para lhe escrever. Não queria perder o único elo que tinha com o Paulo.
No dia 30 de abril de 2016, aos 63 anos de idade, o Paulo deixou esta vida terrena. No dia 4 de maio eu estava no Alfa Pendular a caminho de Aveiro para apresentar uma comunicação no Congresso Pelos Mares da Língua Portuguesa. Preparava a minha comunicação e inclui na entrada uma homenagem sentida ao amigo que tanto peso teve no início da minha aventura indiana:
Foi nas palavras de Paulo Varela Gomes, nas tertúlias à volta deste tema, que o meu entendimento do indo-português, se transformou rapidamente em (in)certezas e inquietações face a problemática do que significa realmente falar sobre o que é indo-português. Hoje, mais que nunca, em que o mundo de cá e o de lá está mais pobre com a sua partida, agradeço a sua amizade e as verdades brutalmente honestas (como ele gostava de me dizer) e a ele dedico este meu dia. Reconheço que nunca estarei à altura do seu juízo crítico, mas espero que o meu percurso académico me possa aproximar. Enquanto escrevia estas palavras, no balanço do comboio, comecei a imaginar a sua voz, a forma como conseguíamos ouvir o ressoar e entoação da sua voz nas linhas que escrevia, fosse texto académico ou artigo de jornal. Essa voz ficou cada vez mais alta, e de repente senti-me a enlouquecer. Estava de facto a ouvir a sua voz, literalmente! Parei de teclar, fechei os olhos e achei que nada disto fazia sentido. A voz continuava… olho em frente e espreito no corredor na carruagem à procura de uma explicação plausível, terrena e científica para este cenário sonoro. Alguém estava a ouvir no seu telemóvel a «Última Aula» do Paulo Varela Gomes na Universidade de Coimbra que ele havia dado em Dezembro de 2012. Respirei fundo, dei uma gargalhada que certamente fez os restantes passageiros achar que eu estava à beira de um colapso psicótico, e conversei num diálogo mudo com o Paulo que, se esta era a forma que ele tinha de me dizer adeus, que eu aceitava e que iria levar com carinho para toda a minha vida.
O PAULO VIVE NAS SUAS ENTRELINHAS
Hoje leio os seus livros e estou a começar a conhecer o Paulo autor de livros de ficção. É uma surpresa diária conhecer um Paulo que eu não sabia ser assim. Por vezes em choque (sobretudo nalgumas passagens do «Hotel»), outras vezes em espanto, mas há um fio condutor em todas elas: a voz que fica nas entrelinhas. Quem conheceu o Paulo sabe do que estou a falar. Há uma certa construção frásica que pertence apenas ao Paulo, aquela característica que mostra a sua essência, a sua centelha sagrada que perdura para além dos tempos.
Reencontrei a Patrícia em Goa em 2017. Dizendo a verdade, eu nunca privei suficientemente com ela para poder dizer que a conhecia. O Paulo era o meu elo e a Patrícia deveria ser o nosso elo em todos os emails que eu enviei e o Paulo respondia. Agradeci-lhe ter-me permitido ter o Paulo nesse tempo e dizer-lhe pessoalmente o que o Paulo significou para mim. Acabamos abraçadas a chorar, numa espécie de luto comum que nunca se fará.
Mónica Esteves Reis, 16 julho 2016