Perder-se-á a capela onde sita um dos exemplares mais caraterísticos da talha típica da Província do Norte

Retábulos da Capela de Nossa Senhora das Angústias, Damão Grande. Foto da autora

Perder-se-á a capela onde sita um dos exemplares mais caraterísticos da talha típica da Província do Norte, produzida na primeira metade do século XVIII, se os valores patrimoniais não forem salvaguardados. Segundo artigo da Lusa, aqui, e aqui, existe uma intenção de compra do terreno onde sita a capela de Nossa Senhora das Angústias[1], compra essa que parece assentar num argumento legal de 2013, e receia a comunidade que esta aquisição dê lugar a uma demolição do espaço – onde ainda hoje se celebram atos religiosos – para dar lugar a um alargamento do campo de futebol que sita próximo da capela.

“DAMÃO PODE SER UM PEQUENO TERRITÓRIO À ESCALA DO QUE É A ÍNDIA E TER UMA MINORIA CATÓLICA, MAS NESTE PEQUENO TERRITÓRIO SUBSISTEM 11 EDIFÍCIOS RELIGIOSOS CATÓLICOS EM APENAS 72KM2.”

Não temos informação exata sobre quais serão as intenções da Municipalidade em Damão, no entanto, uma certa apatia perante a preservação do património indo-português parece assolar várias regiões na Índia em que Damão não será exceção.

Damão pode ser um pequeno território à escala do que é a Índia e ter uma minoria católica, mas neste pequeno território subsistem 11 edifícios religiosos católicos em apenas 72km2. E se é verdade que subsistem edifícios antigos, também é verdade que existem construções mais recentes o que testemunha a presença e permanência do culto e fé cristã[2].

Do que o tempo levou restam as ruínas dos Conventos de Santo Agostinho e o de São Domingos, e não subsistem vestígios do Convento de São Francisco, Convento de Santo António e da Misericórdia, bem como a igreja de São Paulo e Convento das Onze Mil Virgens, no entanto, diversos retábulos das extintas missões resistiram ao esquecimento e apagar do tempo e estão aparelhados em novas edificações religiosas ou mesmo transferidos para edificações antigas.

Os valores patrimoniais não são estanques, e quando falamos de uma comunidade pluricultural e plurirreligiosa, torna-se ainda mais difícil compreender a tangibilidade ou intangibilidade patrimonial. Quando esse património é partilhado por várias culturas, como o caso da Índia, há uma maior plasticidade na perceção do que é o valor patrimonial. Esta plasticidade, aliada a políticas públicas que beneficiam uma expressão cultural acima de muitas outras, criam ambientes reais de desigualdade, afetando a sua preservação. No entanto, a Índia, segundo a sua constituição, é “uma república soberana, Socialista, Secular e Democrática e deve assegurar para todos os cidadãos: justiça social, económica e política; liberdade de pensamento, expressão, crença, fé e culto”[3].

“SE NO SEIO DESTA COMUNIDADE NÃO EXISTEM IMPEDIMENTOS RELIGIOSO-CULTURAIS, SE HÁ CASAMENTOS INTER-RELIGIOSOS, E FORMAM-SE AMIZADES DE LONGA DATA QUE NÃO OLHAM A QUE CREDO SE ORA, O PATRIMÓNIO EDIFICADO DEVE PODER CONTINUAR A CONTAR A SUA HISTÓRIA, A HISTÓRIA DE DAMÃO E DOS DAMANENSES.”

Damão pode ser exceção a esta apatia se a Municipalidade tratar este assunto com a máxima seriedade e respeito pela comunidade católica, mesmo sendo uma minoria na realidade religiosa. Se no seio desta comunidade não existem impedimentos religioso-culturais, se há casamentos inter-religiosos, e formam-se amizades de longa data que não olham a que credo se ora, o património edificado deve poder continuar a contar a sua história, a história de Damão e dos Damanenses.

A arte na capela das Angústias é o reflexo desta multiplicidade de culturas: retábulos que expressam a fé cristã entalhados por duas oficinas distintas de artesãos locais, certamente hindus, que com toda a sua arte e sabedoria ancestral deram a forma e magistralidade que ainda hoje se pode ver. Uma dessas oficinas, a que fez o retábulo da ousia e abóbada da capela, totalmente entalhada, foi também responsável pelos retábulos do Bom Jesus e de Nossa Senhora do Mar, os retábulos colaterais e os nichos da Igreja do Bom Jesus, e os retábulos da ousia e do nicho da capela de Nossa Senhora de Fátima; eram profissionais hábeis que tinham gosto pela profusão decorativa que percorre todos os espaços dos retábulos, e que muito embora fizessem uma interpretação pouco canónica dos entablamentos, a qualidade é inegável e são facilmente identificados pela inclusão de uma grinalda decorativa que percorre os fustes das colunas e diferenciação do imoscapo.

A outra oficina, a que fez os retábulos colaterais desta capela, foi também responsável pela execução dos retábulos da Capela de Nossa Senhora do Rosário e os retábulos colaterais da igreja de Nossa Senhora das Angústias. A perfeição na execução dos retábulos foi por esta oficina totalmente conseguida, contribuindo para isto o douramento da madeira, único em todos os retábulos existentes de Damão e também de Diu [4]. Estes artesãos executaram os entalhes e interpretaram o evangelho e as formas arquitetónicas, sem qualquer intenção formal de criar híbridos artísticos. A intenção era a de fazer explicar, através dos códigos artísticos que lhes eram familiares, o evangelho requerido nas representações cristãs. E aqui reside a espetacularidade: o choque de várias culturas gerou uma arte única. É frequente encontrar influências da arte Jaina nas figuras de vulto, com o seu rigor hierático, inexpressivo e frontalidade, assim como um tratamento das vestes muito particular à arte mogol. Mas vamos encontrar também o mesmo carácter híbrido ou sincrético nos elementos arquitetónicos e elementos decorativos.

“O PATRIMÓNIO CULTURAL CONTRIBUI PARA A DEFINIÇÃO DA IDENTIDADE LOCAL E CONSTITUI-SE UMA EXPRESSÃO RICA E FUNDAMENTAL DA DIVERSIDADE CULTURAL. É UM TESTEMUNHO DO PASSADO, PRESERVADO ATÉ O PRESENTE PARA GARANTIR A TRANSMISSÃO DA HISTÓRIA ÀS GERAÇÕES FUTURAS”.

Preservar o passado é também cuidar do futuro; compreendo que as entidades e organismos responsáveis pelas políticas públicas queiram abraçar o futuro com tudo o que o futuro tem de positivo para dar, há, no entanto, que poder analisar o impacto futuro das tomadas de decisão, a nível sociocultural, ou mesmo ambiental e energético. “O património cultural contribui para a definição da identidade local e constitui-se uma expressão rica e fundamental da diversidade cultural. É um testemunho do passado, preservado até o presente para garantir a transmissão da história às gerações futuras. Uma ação interventiva em património deve ter em conta o direito de proteger esses valores, ser delimitado pelas várias organizações internacionais existentes para enquadrar e legislar o valor cultural, histórico e artístico do património cultural e garantir que ações adequadas e eficazes sejam tomadas”[5]. O património também gera riqueza e o lucro que o turismo cultural gera pode aplicar-se na preservação patrimonial e ser autossustentável; a partir do momento que se valoriza o passado comum e aquilo que é o ADN das comunidades, todos saem a ganhar: comunidade, zeladores patrimoniais e poder local.


[1] A capela datará do século XVI-XVIII, e embora não haja uma datação exata esta já estava representada na Planta da Praça de Damão, de 1760. Dela se avista uma das fortificações da antiga administração portuguesa, que mantém até hoje o sistema iconográfico original. Reis, Mónica Esteves. «Capela de Nossa Senhora das Angústias. Daman [Damão/Damaun], Guzerate, Índia». Em Património de Origem Portuguesa no Mundo. Vol. Ásia e Oceania. Lisboa, 2015. http://www.hpip.org/Default/pt/Homepage/Obra?a=412.

[2]Num total são 3 igrejas (Igreja de Nossa Senhora dos Remédios, Igreja Matriz do Bom Jesus, Igreja de Nossa Senhora do Mar), 4 capelas (Capela de Nossa Senhora do Rosário, Capela da Imaculada Conceição do antigo Convento de São João de Deus, Capela do Recolhimento, Capela das Irmãs Franciscanas junto às ruínas do antigo Convento dos Agostinhos) e 4 ermidas (Ermida de Nossa Senhora das Angústias, Ermida de Santo António em Badrapor, Ermida de Santo António em Marvor, Ermida de Santa Cruz). Reis, Mónica Esteves. «O retábulo da Companhia de Jesus – Damão e Diu». Dissertação Final Licenciatura, Universidade do Algarve, 2007.

[3] Constituição da Índia, tradução livre.

[4] Reis, Mónica Esteves. «Artistic and Cultural Values in the Churches of Diu: Reflections on Architecture, Iconography, and Artistic Processes». Asian Review of World Histories 8, n.o 2 (14 de julho de 2020): 255–72. https://doi.org/10.1163/22879811-12340078.

[5] Reis, Mónica Esteves. «Índia pós-colonial. Questões em torno dos valores patrimoniais, identidade e preservação da talha nas igrejas indo-portuguesas». Em Bernardo Ferrão e as artes decorativas no Oriente e no Mundo. Estudos de Homenagem, editado por Associação Círculo Dr. José de Figueiredo e Amigos do Museu Nacional de Soares dos Reis, 267–303. Porto, 2022.

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